A equivocada interpretação da lei da SAF quanto ao Regime Centralizado de Execuções

A instituição do RCE para clubes de futebol que se transformarem em SAF é medida salutar para suspensão das dívidas anteriores. Todavia, não pode...
A instituição do RCE para clubes de futebol que se transformarem em SAF é medida salutar para suspensão das dívidas anteriores. Todavia, não pode ser utilizado por clubes que não pretendam converterem-se em SAF.

Em 09 de agosto p.p., foi publicada a Lei 14.193/2021, que instituiu a figura da SAF – Sociedade Anônima do Futebol, e introduziu diversas novidades visando a possibilidade de reestruturação de clubes de futebol.

Em outros temas, falaremos sobre os aspectos societários, tributários, governança e inovações trazidas pelo novo dispositivo legal. Neste, o destaque é o receio de uma interpretação, a nosso ver, equivocada do texto da lei.

Objetivando criar um incentivo a atrair novos investidores no futebol, a Lei da SAF blindou a nova empresa a ser criada, com um período de suspensão das inomináveis e incontáveis dívidas de diversos clubes nacionais, impedindo a a sucessão imediata das dívidas para a nova empresa e a suspensão da execução das dívidas do clube original, proibindo-se penhoras e bloqueios judiciais.

Tudo isso, em caso de abertura de Regime Centralizado de Execuções (RCE), tanto para débitos cíveis como trabalhistas.

A figura do RCE já existia no Poder Judiciário brasileiro, com maior uso no âmbito do processo do trabalho. O próprio TST regulamenta o Procedimento de Reunião de Execuções[1], eis que, desde 2011 já se viam os Núcleos de Apoio à Execução no âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho.

Tal Regime centralizado conta com plano de credores, parcelamentos, redução de juros, correção e outras ferramentas para possibilitar o recebimento dos créditos pelos trabalhadores (ainda que de forma parcial), sem que com isso incorra na falência do devedor.

Registre-se que é salutar a intenção do legislador em proteger a nova empresa das execuções havidas contra o clube antigo, desde que esta nova empresa contribua parcialmente para a quitação destas dívidas.

Assim, a nova empresa surge limpa e despida de quaisquer ranços que possam desestimular a entrada de novos investidores. Contudo, a leitura isolada de parte do texto da Lei não pode servir a desestimular a criação da própria SAF.

Isto porque o artigo 23, da referida lei, possui a seguinte redação:

Art. 23.  Enquanto o clube ou pessoa jurídica original cumprir os pagamentos previstos nesta Seção, é vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas. (grifamos)

Este artigo está incluso na Seção V (Do modo de Quitação das Obrigações), Subseção I (Do Regime Centralizado de Execuções), e os “pagamentos” referidos neste artigo estão previstos no artigo 14 e seguintes da Lei:

Art. 14.  O clube ou pessoa jurídica original que optar pela alternativa do inciso I do caput do art. 13 desta Lei submeter-se-á ao concurso de credores por meio do Regime Centralizado de Execuções, que consistirá em concentrar no juízo centralizador as execuções, as suas receitas e os valores arrecadados na forma do art. 10 desta Lei, bem como a distribuição desses valores aos credores em concurso e de forma ordenada.

De fato, a leitura destes dois artigos, de forma isolada, pode levar o leitor a erro, de achar que qualquer entidade de prática desportiva (clube original) pode se utilizar dos benefícios da Lei 14.193/21, sem se transformar ou cindir o seu departamento de futebol em SAF.

Infelizmente, alguns tribunais acolheram esta tese, o que motivou a redação deste informativo. [2]

A nosso ver, a interpretação sistemática, teleológica e até mesmo metódica da norma impõe que o clube somente pode se beneficiar da suspensão das execuções com base na Lei 14.193/21 a partir da criação da SAF. Importante ver a redação do artigo 10, da referida norma:

Art. 10.  O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente:

I – por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei;

II – por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.

Pela conclusão lógica e sequencial da lei, de acordo com o art. 10 (citado no caput do art. 14), a SAF transformada ou criada pelo clube original não terá penhoras decorrentes das dívidas que eram deste clube original e vencidas antes da constituição da SAF.

Não há qualquer dúvida que o RCE vai concentrar exclusivamente os débitos do clube original, fixados antes da constituição da SAF. E somente continuará em vigor, com a suspensão das penhoras (art. 23), se o clube original efetuar os pagamentos dos credores (arts. 14 e 18), com a utilização dos valores destinados pela SAF, na forma do art. 10.

O longo tempo previsto na lei para a quitação dos débitos anteriores à criação da SAF (6 anos de prazo para quitação dos débitos, prorrogável por mais 4) é um ótimo benefício, desde que a entidade de prática desportiva assuma também determinados ônus trazidos pela mesma norma.

A lei da SAF veio para criar novas receitas aos clubes e a atração de investidores, o que não ocorre na formatação associativa.  Em não havendo pretensão para adequação ao novo formato societário criado pela norma em comento, não se pode dela colher os frutos e benesses. A conclusão é óbvia, mas como visto, também é lógica.

O RCE não pode, com todas as vênias, funcionar como uma moratória permanente, como infelizmente ocorreu com diversos atos trabalhistas[3] de clubes brasileiros, que nunca deixaram de ser impontuais em suas obrigações trabalhistas, e mesmo após 10 (dez) anos de RCE não conseguiram quitar suas dívidas.

O Regime centralizado previsto na Lei 14.193/21 exclui novos débitos posteriores à criação da SAF, eis que esta deverá assumir as dívidas do departamento de futebol, e é exclusivo para os débitos anteriores a criação da nova empresa.

Se o clube não pretende criar esta nova empresa, na forma da Lei, então não cabe o RCE.

Conclui-se, então, que aos clubes que pretendem transformarem-se em SAF, ou cindirem seu departamento de futebol para tal, salutar medida será a utilização do RCE para suspensão das dívidas judiciais anteriores. Contudo, aos clubes que não pretendem tal conversão societária, o mesmo benefício, por estes fundamentos, não pode ser aplicado.


[1] Provimento CGJT n. 01, de 09 de fevereiro de 2018

[2] Processo n. 0078735-13.2021.8.19.0000, do TJ/RJ

[3] O Fluminense FC teve o seu RCE concedido através do Ato n. 98/2011, pelo TRT da 1ª Região. Durante seus 10 anos de vigência, pagou aproximadamente R$ 80milhões de reais em dívidas trabalhistas. Em outubro de 2021, tal ato foi encerrado e permaneceram diversas dívidas vendidas desde 2011.

Este informativo tem por finalidade veicular informações jurídicas relevantes aos nossos clientes, não se constituindo em parecer ou aconselhamento jurídico, e não acarretando qualquer responsabilidade a este escritório. É imprescindível que casos concretos sejam objeto de análise específica.

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Marcio Andraus

Marcio Andraus

Atua no contencioso cível, trabalhista e desportivo (arbitral e justiça desportiva). Formado em 1999, atuou no contencioso judicial em favor de grandes clubes do futebol brasileiro, além de representar renomados atletas. Professor de cursos de pós-graduação em Direito Desportivo e de MBA em Gestão Esportiva.
Marcio Andraus

Marcio Andraus

Atua no contencioso cível, trabalhista e desportivo (arbitral e justiça desportiva). Formado em 1999, atuou no contencioso judicial em favor de grandes clubes do futebol brasileiro, além de representar renomados atletas. Professor de cursos de pós-graduação em Direito Desportivo e de MBA em Gestão Esportiva.

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