O rumoroso caso recentemente noticiado da sentença penal condenatória sofrida por Leo Lins em razão de piadas entendidas como discriminatórias leva-nos a uma reflexão sobre a intersecção do crime e de arte.
No caso relatado, é importante reconhecer que suas manifestações ocorreram no contexto de espetáculos de stand-up comedy, gênero caracterizado por exageros, ironias e críticas sociais, muitas vezes desconectados de filtros morais convencionais. O público desses espetáculos comparece ciente da natureza provocadora do conteúdo, o que configura expectativa legítima de fruição estética com base no politicamente incorreto.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, incisos IV e IX, garante a liberdade de manifestação do pensamento e a liberdade de expressão artística. Ademais, o art. 220, §2º, reforça que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística e artística, em qualquer veículo de comunicação social.
Em setembro de 2023, o ministro André Mendonça, do STF, ao julgar a Reclamação 60382, cassou a decisão do TJSP que impunha censura prévia ao comediante. Entre os fundamentos adotados, destacam-se dois de suma importância.
O primeiro, a distinção entre o animus jocandi (ânimo de brincar) e o dolo específico necessário à configuração de delitos previstos no ordenamento penal é essencial para a preservação da liberdade de expressão artística assegurada pela Constituição Federal. Daí que a aferição do “ânimo interno do agente” é crucial para qualquer repercussão penal.
O segundo, a relevância do ambiente em que o ato é praticado. Como disse o ministro, “trata-se, a toda evidência, de um show de humor, conhecido como stand up comedy, modalidade atualmente bastante difundida no Brasil, no qual imperam – e é exatamente isso que esperam os consumidores desses eventos – o riso, a galhofa, a deformação hiperbólica da realidade, a crítica abusada, debochada, mordaz, polêmica, por vezes ofensiva e, frequentemente, sem qualquer compromisso com o ideário politicamente correto.”
Essa afirmação reforça o entendimento de que o ambiente comunicativo e o gênero discursivo exercem papel central na interpretação jurídica da fala. A descontextualização do discurso humorístico para fins punitivos compromete o direito fundamental à liberdade artística.
Nesse gênero, é esperada uma comunicação mordaz, provocadora e, muitas vezes, ofensiva – e que esse é o próprio pacto comunicativo celebrado entre artista e plateia. Portanto, retirar trechos de piadas desse contexto e interpretá-los isoladamente equivale a desconfigurar o sentido original da mensagem e aplicar, indevidamente, uma responsabilização penal que viola o princípio da intervenção mínima do Direito Penal e o da adequação social.
Não bastasse, a Lei nº 14.532/2023, ao introduzir o art. 20-C na Lei nº 7.716/1989, determina que nos crimes de preconceito e discriminação, “a ausência de intenção do agente não afasta o caráter discriminatório do ato”.
Essa disposição, ao nosso ver, afronta o princípio da responsabilidade penal subjetiva, decorrente do princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, CF) e da teoria do crime adotada pelo Direito Penal brasileiro, fundada no dolo e na culpa.
Mais grave ainda, o dispositivo restringe a aplicação do princípio da livre convicção motivada do juiz, consagrado no art. 155 do Código de Processo Penal.
Ao presumir a existência de discriminação mesmo sem a comprovação de intenção, o art. 20-C cria um regime de responsabilidade objetiva incompatível com o Direito Penal, além de colocar em xeque a função essencial do juiz de avaliar o caso concreto, as provas e as circunstâncias com independência técnica e liberdade crítica.
Trata-se de um retrocesso jurídico, que substitui a análise individualizada por um critério presumido e normativamente fechado. Em nome de um justificado combate à discriminação, cria-se um campo fértil para decisões enviesadas, subjetivas ou baseadas em julgamentos morais extrajurídicos, o que representa grave risco ao devido processo legal.
O caso de Léo Lins não deve ser lido isoladamente, mas sim como um alerta institucional sobre os limites da interpretação penal e sobre a necessidade de respeitar a liberdade de expressão em sua forma mais sensível: a arte.
É papel do Judiciário garantir o equilíbrio entre a proteção de grupos vulneráveis e a preservação das garantias individuais dos réus, sem abrir mão de critérios técnicos, como a análise do âmbito comunicativo, do animus do agente, da ausência de dolo e da autonomia judicial para julgar com liberdade.
Criminalizar o riso é subverter os pilares constitucionais da liberdade. E tornar o juiz um mero executor de presunções legais, sem margem de análise contextual, é comprometer a própria Justiça.
Por:
Alécio Ciaralo, Rodrigo Calabria e Leonardo Matsumoto – CCLA Advogados