Em 6 de agosto de 2021, foi publicada a Lei 14.193, que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol.
A sanção da Lei veio acompanhada do veto presidencial ao Regime de Tributação Específica do Futebol, posteriormente afastado, pelo Senado Federal, em 27 de setembro de 2021.
Nas próximas semanas, publicaremos uma série de informativos sobre os 3 capítulos, 8 seções e 2 subseções da Lei, a começar pelas Disposições Introdutórias, analisadas a seguir.
Como exploramos em informativos anteriores sobre o tema[1] [2], a Lei 14.193 optou pela criação de novo tipo jurídico, a Sociedade Anônima do Futebol, e por utilizar a Lei da S.A. (Lei 6.404/76) de forma subsidiária.
No art. 1º, portanto, a Lei 14.193 empresta nomenclatura da Lei da S.A. e caracteriza a SAF como a “companhia cuja atividade principal consiste na prática do futebol, feminino e masculino, em competição profissional”.[3]
Outro aspecto que se evidencia nas primeiras linhas da nova lei é a preocupação do legislador com o futebol feminino, pois a obrigatoriedade de manutenção de equipes de ambos os gêneros é prevista em diversos artigos.
Retornaremos a este tema em breve, antes, porém, analisaremos o conceito de competição profissional, que está contido na Lei Pelé (Lei 9.615/98), de aplicação também subsidiária à Lei 14.193.
De acordo a Lei Pelé, considera-se competição profissional aquela promovida para obter renda e disputada por atletas profissionais, cuja remuneração decorra de contrato de trabalho desportivo.[4]
Por sua vez o Decreto 7.984/2013 regulamenta o conceito de renda, como a receita auferida – por clubes, ligas e federações – na organização e realização de competição desportiva com a venda de ingressos, patrocínio e negociação dos direitos audiovisuais do evento desportivo, entre outros.[5]
Portanto, são dois os requisitos para caracterizar competição profissional: obtenção de renda e atletas profissionais.
De volta ao tema dos gêneros, temos segurança em classificar as competições femininas como profissionais, independentemente da cobrança de ingressos, isso porque elas são disputadas por atletas profissionais – que devem estar vinculadas aos seus clubes por meio de contrato especial de trabalho desportivo – e geram receitas de patrocínio aos clubes, federações e confederação.
Esta interpretação também se estende aos clubes que disputam competições chamadas “de base”, pois as equipes são formadas por atletas já profissionalizados – a partir de 16 anos de idade – e também resultam em receitas de patrocínio às entidades desportivas envolvidas.
Nas Disposições Introdutórias da Lei 14.193 também estão relacionadas as atividades[6] facultativas que podem constar do objeto social de uma SAF, em complemento à única atividade obrigatória: a prática de futebol masculino e feminino, em competições profissionais.
Analisaremos, a seguir, as atividades não-obrigatórias:
II – a formação de atleta profissional de futebol, nas modalidades feminino e masculino, e a obtenção de receitas decorrentes da transação dos seus direitos desportivos;
Esta atividade se refere à formação de atletas e à obtenção de receitas com suas transferências a outras equipes, seja em decorrência da indenização de transferência, seja como resultado de negociações de direitos econômicos, sell-on fee[7], mais valia, ou por conta das contribuições de solidariedade e indenizações de formação aplicáveis.
III – a exploração, sob qualquer forma, dos direitos de propriedade intelectual de sua titularidade ou dos quais seja cessionária, incluídos os cedidos pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu;
Neste aspecto, a Lei se refere à exploração comercial de nomes, símbolos, bandeiras, mascotes, hinos e demais propriedades intelectuais inerentes ao futebol. Em que pese tais direitos possam ser mantidos com o clube ou pessoa jurídica original, faz sentido que eles sejam cedidos e integrem o escopo da SAF, pois são importantes fontes de receita, que dificilmente serão dispensadas por investidores.
IV – a exploração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, relacionados ao futebol;
Os terceiros serão basicamente atletas e treinadores vinculados à SAF, que terão suas imagens, nome, som da voz, apelidos e demais direitos conexos explorados pela companhia, como já ocorre atualmente.
V – a exploração econômica de ativos, inclusive imobiliários, sobre os quais detenha direitos;
VI – quaisquer outras atividades conexas ao futebol e ao patrimônio da Sociedade Anônima do Futebol, incluída a organização de espetáculos esportivos, sociais ou culturais;
Estes dois incisos tratam de outras receitas com a exploração econômica de ativos e atividades conexas ao futebol. O maior exemplo desta exploração é o match day, que envolve a venda de ingressos, a locação de camarotes, a exploração de espaços por lojas, restaurantes e estacionamentos. Outros exemplos são a publicidade e a locação da arena para shows e eventos.
VII – a participação em outra sociedade, como sócio ou acionista, no território nacional, cujo objeto seja uma ou mais das atividades mencionadas nos incisos deste parágrafo, com exceção do inciso II.
Neste inciso, a Lei permite que a SAF participe do capital de outras empresas, porém não de outra SAF ou empresa que exerça atividade de fomento e prática do futebol.
Por fim, as Disposições Introdutórias incluem a SAF no conceito de entidade de prática desportiva, atraindo uma série de impedimentos e proibições relacionadas à gestão, ao controle e à participação acionária previstos na Lei Pelé.[8]
Assim, nenhuma pessoa física ou jurídica que, direta ou indiretamente, seja detentora de parcela do capital com direito a voto ou, de qualquer forma, participe da administração de qualquer entidade de prática desportiva poderá ter participação simultânea no capital social ou na gestão de outra entidade de prática desportiva disputante da mesma competição profissional.
Essa vedação aplica-se ao cônjuge e aos parentes até o segundo grau das pessoas físicas; e às sociedades controladoras, controladas e coligadas de ditas pessoas jurídicas, bem como a fundo de investimento, condomínio de investidores ou outra forma assemelhada que resulte na participação concomitante.
A Lei Pelé claramente se preocupa com a manipulação de resultados e com a manutenção do fair play, por isso o impedimento está relacionado à disputa da mesma competição pelos clubes com coincidência de gestores, acionistas com direito a voto e/ou controladores.
Não é proibido, portanto, investir em dois clubes de futebol, desde que tal participação não contemple direito a voto ou que os clubes não disputem a mesma competição. A violação deste dispositivo implicará sanções desportivas e disciplinares, como a eliminação da competição.
Apesar de estarem divididas em apenas dois artigos os conceitos trazidos pelas Disposições Introdutórias se relacionam com outras normas, cujos conteúdos são de conhecimento obrigatório aos clubes que desejam adotar a SAF como tipo jurídico.
Outrossim, parece-nos correta a exigência de manutenção de futebol feminino profissional pelas SAFs, uma contrapartida entre tantos benefícios proporcionados pela Lei.
O CCLA Advogados está à disposição para sanar qualquer dúvida relativamente à SAF e demais temas relacionados à Lei 14.193/2021.
[1] Lei 14.193 – Senado Derruba Vetos e Lei do Clube Empresa Retoma Atrativos para Investidores no Futebol. https://ccla.com.br/desportivo/lei-14-193-senado-derruba-vetos-e-lei-do-clube-empresa-retoma-atrativos-para-investidores-no-futebol
[2] Lei 14.193: novas ferramentas para os clubes equalizarem o fluxo de caixa. https://ccla.com.br/desportivo/lei-14-193-novas-ferramentas-para-os-clubes-equalizarem-o-fluxo-de-caixa-2/
[3] Lei 14.193/21 – Art. 1º. Constitui Sociedade Anônima do Futebol a companhia cuja atividade principal consiste na prática do futebol, feminino e masculino, em competição profissional, sujeita às regras específicas desta Lei e, subsidiariamente, às disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998.
[4] Lei 9.615/98 – Art. 26. Atletas e entidades de prática desportiva são livres para organizar a atividade profissional, qualquer que seja sua modalidade, respeitados os termos desta Lei.
Parágrafo único. Considera-se competição profissional para os efeitos desta Lei aquela promovida para obter renda e disputada por atletas profissionais cuja remuneração decorra de contrato de trabalho desportivo. (Incluído pela Lei nº 10.672, de 2003)
[5] Decreto 7984/2013 – Art. 43. Considera-se competição profissional aquela promovida para obter renda e disputada por atletas profissionais cuja remuneração decorra de contrato especial de trabalho desportivo.
Parágrafo único. Entende-se como renda a receita auferida pelas entidades previstas no § 10 do art. 27 da Lei nº 9.615, de 1998, na organização e realização de competição desportiva com a venda de ingressos, patrocínio e negociação dos direitos audiovisuais do evento desportivo, entre outros.
[6] Lei 14193/21 – Art. 1º, § 2º O objeto social da Sociedade Anônima do Futebol poderá compreender as seguintes atividades:
I – o fomento e o desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática do futebol, obrigatoriamente nas suas modalidades feminino e masculino;
II – a formação de atleta profissional de futebol, nas modalidades feminino e masculino, e a obtenção de receitas decorrentes da transação dos seus direitos desportivos;
III – a exploração, sob qualquer forma, dos direitos de propriedade intelectual de sua titularidade ou dos quais seja cessionária, incluídos os cedidos pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu;
IV – a exploração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, relacionados ao futebol;
V – a exploração econômica de ativos, inclusive imobiliários, sobre os quais detenha direitos;
VI – quaisquer outras atividades conexas ao futebol e ao patrimônio da Sociedade Anônima do Futebol, incluída a organização de espetáculos esportivos, sociais ou culturais;
VII – a participação em outra sociedade, como sócio ou acionista, no território nacional, cujo objeto seja uma ou mais das atividades mencionadas nos incisos deste parágrafo, com exceção do inciso II.
[7] Em seu uso mais comum, a cláusula de venda (sell on fee clause) é inserida em contratos de transferência entre dois clubes, em que o clube vendedor, em contrapartida a uma taxa de transferência imediata mais baixa, retém o direito a uma certa porcentagem de uma taxa de transferência futura potencial do jogador para um terceiro clube. (https://www.springerprofessional.de/en/the-sell-on-clause-in-football-recent-cases-and-evolutions/10939098)
[8] Lei 9.615/98 – Art. 27-A. Art. 27-A. Nenhuma pessoa física ou jurídica que, direta ou indiretamente, seja detentora de parcela do capital com direito a voto ou, de qualquer forma, participe da administração de qualquer entidade de prática desportiva poderá ter participação simultânea no capital social ou na gestão de outra entidade de prática desportiva disputante da mesma competição profissional.
§ 1o É vedado que duas ou mais entidades de prática desportiva disputem a mesma competição profissional das primeiras séries ou divisões das diversas modalidades desportivas quando:
a) uma mesma pessoa física ou jurídica, direta ou indiretamente, através de relação contratual, explore, controle ou administre direitos que integrem seus patrimônios; ou,
b) uma mesma pessoa física ou jurídica, direta ou indiretamente, seja detentora de parcela do capital com direito a voto ou, de qualquer forma, participe da administração de mais de uma sociedade ou associação que explore, controle ou administre direitos que integrem os seus patrimônios.
§ 2o A vedação de que trata este artigo aplica-se:
a) ao cônjuge e aos parentes até o segundo grau das pessoas físicas; e
b) às sociedades controladoras, controladas e coligadas das mencionadas pessoas jurídicas, bem como a fundo de investimento, condomínio de investidores ou outra forma assemelhada que resulte na participação concomitante vedada neste artigo.
§ 3o Excluem-se da vedação de que trata este artigo os contratos de administração e investimentos em estádios, ginásios e praças desportivas, de patrocínio, de licenciamento de uso de marcas e símbolos, de publicidade e de propaganda, desde que não importem na administração direta ou na cogestão das atividades desportivas profissionais das entidades de prática desportiva, assim como os contratos individuais ou coletivos que sejam celebrados entre as detentoras de concessão, permissão ou autorização para exploração de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, bem como de televisão por assinatura, e entidades de prática desportiva para fins de transmissão de eventos desportivos.
§ 4o A infringência a este artigo implicará a inabilitação da entidade de prática desportiva para percepção dos benefícios de que trata o art. 18 desta Lei.
§ 5o As empresas detentoras de concessão, permissão ou autorização para exploração de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, bem como de televisão por assinatura, ficam impedidas de patrocinar ou veicular sua própria marca, bem como a de seus canais e dos títulos de seus programas, nos uniformes de competições das entidades desportivas.
§ 6o A violação do disposto no § 5o implicará a eliminação da entidade de prática desportiva que lhe deu causa da competição ou do torneio em que aquela se verificou, sem prejuízo das penalidades que venham a ser aplicadas pela Justiça Desportiva.