Diante da declaração do Presidente Jair Bolsonaro[1], indicando a existência de norma trabalhista que imponha aos Municípios e Estados a obrigatoriedade de custeio das indenizações “rescisórias” devidas a empregados dispensados por sociedades que prestem serviços não essenciais e que tenham sido obrigadas a fechar seus estabelecimentos em razão da pandemia do novo coronavirus, inúmeros questionamentos surgiram acerca da validade de referida norma.
Trata-se do artigo 486, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que assim está redigido: “Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.”
A norma, denominada em Direito como “Fato do Príncipe” (factum principis), prevê uma situação excepcional, onde a empresa esteja submetida a um prejuízo financeiro totalmente imprevisto e desproporcional, ocasionado pela promulgação de leis, resoluções ou medidas adotadas pelas autoridades governamentais. Em síntese, o artigo busca resguardar empregadores que sofrem prejuízos inesperados através de modificações lícitas e unilaterais impostas pela Administração Pública, garantindo a eles a possibilidade de transferir aos Estados ou Municípios a responsabilidade pelo pagamento de verbas rescisórias.
Recentemente a norma ganhou destaque por ter sua aplicação cogitada em meio à pandemia do novo coronavirus, mais especificamente, às dispensas, sem justa causa, de funcionários que trabalhem em empresas prestadoras de serviços “não essenciais”, cujas atividades foram suspensas indiretamente através dos Decretos presidenciais nº 10.282/2020 e 10.344/2020 e da Lei nº 13.979/2020, que definem os serviços públicos e as atividades essenciais, além de conceituar e autorizar a adoção de medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública.
Com a publicação da Lei e de tais Decretos, surgiu o seguinte questionamento: o fechamento temporário dos serviços não essenciais obriga Municípios e Estados a pagar os custos das dispensas dos funcionários das empresas que prestem tais serviços, ocorridas durante o período?
Para responder ao questionamento, deve-se ter em mente, primeiramente, que a norma trabalhista exige o preenchimento de certos requisitos, tais como a intenção governamental de efetivamente interromper ou extinguir uma atividade específica e a ocorrência de força maior[2].
É inegável que a COVID-19 se insere no conceito de força maior, tanto que o próprio Governo Federal assim classificou a doença por meio da Medida Provisória 927/2020, entretanto, não houve interrupção ou extinção de serviços ou atividades específicas, eis que o Estado determinou a paralisação de todos os serviços que não sejam essenciais, ou seja, a ordem de paralisação é genérica, com intuito principal de preservar a saúde pública e a sociedade.
A impossibilidade de continuação da atividade deve ser definitiva e absoluta, tal como ocorreu, por exemplo, com a proibição de produção e afixação de outdoors através da Lei Cidade Limpa, o que ocasionou no fechamento das empresas que a esta atividade se destinavam; não basta que a atividade da empresa seja tornada mais difícil ou onerosa, uma vez que, por força do art. 2º da CLT, o risco do negócio é do empregador.
Neste sentido, destaca-se recentíssimo Acórdão prolatado nos autos do processo nº 0000245-23.2020.5.06.0000, pelo Pleno do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (PE), onde a crise financeira ocasionada pelo coronavirus foi inserida no risco da atividade econômica: “Deste modo, seria temerário, neste momento, suprimir direitos que, em muitos casos, representam o único meio de subsistência do trabalhador. Por isso, inobstante a grave crise apresentada no cenário atual, decorrente dos efeitos do coronavírus (COVID-19), tenho que não se revela razoável transferir o risco da atividade econômica ao obreiro que é a parte mais vulnerável na relação.”
A suspensão das atividades não partiu de ato discricionário estatal, mas de uma ordem internacional irresistível, cujo combate e meios de conter a propagação foram orientados inclusive pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o que afasta qualquer hipótese de caracterização de medidas pontuais, voltadas a determinados interessados.
Ainda, considerando que a Lei e os Decretos foram editados para conter a propagação da pandemia, os Estados e Municípios somente poderiam ser responsabilizados pelas rescisões dos contratos de trabalho caso os poderes públicos extrapolassem o tempo ou os limites estabelecidos pelo Governo Federal para a quarentena.
Vale destacar, também, que o Estado colocou à disposição dos empregadores a possibilidade de redução proporcional do salário e até mesmo a diminuição das linhas de crédito para pagamentos de salários[3], o que provavelmente será levado em consideração pelos Tribunais judiciais.
A melhor solução neste momento é a negociação coletiva de trabalho, onde as partes envolvidas, o empregador e o empregado, poderão negociar outras alternativas a fim de que a rescisão contratual seja utilizada como última opção.
Portanto, não há o que se falar em aplicação da regra prevista no artigo 486, da CLT (Fato do Príncipe) às dispensas imotivadas decorrentes da paralisação temporária de atividades não essenciais.
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[1] "Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante, etc, que for obrigado a fechar o seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito, tá ok?"
[2] Ocorrência de fatos externos, independentes da vontade humana e que não podem ser controlados.
[3] Através das MPs nº936/2020 e nº 944/2020, respectivamente.